Coração de lata

24/08/2013 20:10

capitulo 1

 

 

Ah... Eu tenho que me cuidar ou qualquer dia desses Penélope me manda para o desmanche e só de pensar nisso tenho calafrios, às vezes fico pensando como os outros robôs lidam com seus humanos, pra mim particularmente é tão difícil. Diz à lenda que robôs não têm sentimento. Isso é uma completa mentira, veja eu, por exemplo: só não tenho dor física, mas o restante dos sentimentos eu tenho até demais e é por esse motivo que mais de uma vez entrei em apuros, na verdade tenho sorte de ainda estar aqui...

Há um ano quando fui ativada para cuidar da menina stefanny tive um surto de raiva e juntei a garota pelos cabelos quando ela jogou na minha cara um prato de purê de batata e esse é foi o meu maior erro, por causa desse episodio me levaram para assistência técnica onde quase me desmontaram colocando chave de fenda aqui e ali e até em lugares que prefiro não comentar e foi dessa forma que aprendi que se quisesse viver teria que me controlar e fingir que sou um robô normal.

Costumo classificar o mundo dos robôs de duas formas o primeiro grupo eu o chamo de normais, eles são robôs de verdade que seguem sua programação sem perceber o mundo ao seu redor. O segundo grupo para ser sincera sou apenas eu.

Agora mesmo não sei como me controlar diante da birra que Stefanny está fazendo, ela não quer ir ao dentista e como sempre ela me culpa por ter que ir onde não tem vontade e eu a robô tenho que ficar quieta e não responder nada e continuar a insistir feito uma retardada como estou fazendo agora:

▬Stefanny são ordens da sua mãe, você tem dentista vá se arrumar...

Ela olhou para mim com ódio e jogou um urso de pelúcia em minha direção.

▬Eu já falei que não vou e acabou...

▬São ordens da sua mãe, você tem que se arrumar...

▬Me deixa em paz! Pedaço de lata inútil... Stefanny se ajeitou na poltrona novamente e se preparou para colocar os fones de ouvido.

▬ Stefanny são ordens da sua mãe, você tem dentista vá se arrumar...

Se você pensa que agir dessa forma não cansa, venha passar um dia no meu lugar e daí você entenderia o que tenho que enfrentar. Essa cena que você acabou de ver não é nem o começo do que tenho vivido nesse ultimo ano.

O melhor momento do dia é à noite, enquanto todos domem e eu finjo que hiberno, como não preciso de descanso esse é o único momento que posso ser eu mesma.

Nessas poucas horas de alivio eu assisto televisão sem precisar ligar o aparelho, conecto meu USB na saída do satélite e voilá imagens em HD direto em minha mente, quando canso da televisão eu entro no mundo da internet e é dessa maneira que estou atualizada com o mundo, sou capaz de afirmar que estou mais informada do que a Penélope, antes que eu me esqueça de falar quem é a Penélope ela é a mãe da Stefanny ela é repórter.

▬Vou falar para minha mãe jogar você em uma lata de lixo, vai encontrar o que fazer...

Cansei de bancar o robô normal, sai do quarto e fui até o corredor onde tem uma mesinha com enfeites e um jarro purificador de água. Peguei o jarro e voltei para o quarto silenciosamente, ela estava sentada de costa para mim em uma poltrona, senti um prazer malévolo quando derramei toda a água na cabeça dela.

▬Stefanny não quer tomar banho, Nicole dá banho em Stefanny... ▬ Senti vontade de dar risada igual às bruxas que vi outro dia no filme.

▬Sua lata maldita do inferno. Vou contar tudo pra mamãe, você vai ver, ela vai levar você para o desmanche de robôs com defeito...

▬Nicole fala para Penélope que só quis ajudar Stefanny. ▬ Eu me sinto uma completa retardada falando dessa maneira tosca, essa voz robotizada me irrita, já fiz o download de uma voz menos mecânica, mas infelizmente não posso usar.

▬Sua lata idiota, você jogou em mim a água do dia, o que eu e a mamãe vamos beber se sentirmos sede? Que merda, eu queria a vovó aqui, se ela não tivesse ido para lua não precisaríamos de você... ▬ Ela começou a chorar e foi para o banheiro e eu percebi o tamanho da encrenca que arrumei. Penélope não vai pensar duas vezes em me levar para assistência quando descobrir que eu desperdicei a água do dia.

 Só teve uma coisa boa nessa historia toda é que a Stefanny se arrumou e eu a levei para o dentista, ela não falou mais nenhuma palavra se quer, eu estava agradecida pelo silêncio, mas me preocupava tanta amabilidade, a julgar pelo o acontecido anteriormente tenho certeza que meu problema é bem grande.

Não colocaram em minha programação orações então não consigo lembrar todas as palavras e nem sei como se faz uma oração espontânea corretamente, nunca fiz o download de nenhuma oração por que só lembro que preciso de uma na hora que a coisa esta critica para o meu lado.

Pensando nisso, esta aí mais uma coisa esquisita sobre mim, tenho lembranças de outra vida, são lembranças embaçadas como se eu tentasse ver através de uma nuvem de fumaça. Não consigo definir se elas são reais ou imaginação fértil, seja como for sou invadidas por essas imagens embaçadas diariamente, sempre vejo uma senhora rechonchuda de cabelo avermelhado e também um homem de pele clara, olhos verdes e cabelo tão preto quanto a noite mais escura, sinto uma saudade que parece que vai me matar, muitas vezes tento afastar essas lembranças, penso que grande parte dos meus problemas é culpa delas, se eu não as tivesse não teria emoções tão humanas e seria mais normal.

Enquanto Stefanny estava no dentista a minha obrigação é passar no mercado e comprar alguma coisa para ela comer mais tarde, eu sempre me irrito com esses mercados virtuais: não dá para ter certeza se o mantimento é de boa qualidade ou não, gosto dos mercados a moda antiga, aqueles... As pessoas entravam e escolhiam a marca de cada produto que queriam e depois pagava. Pena que esse tipo de comercio já não existe, a compra é toda feita em cabines computadorizada onde só especificamos quais alimentos queremos, somente depois que efetuamos o pagamento um pacote fechado aparece em uma pequena comporta feita especialmente para entrega.

Depois de terminar as compras voltei até o consultório, mas Stefanny ainda estava lá dentro e pelo visto ainda demoraria. O trabalho que ela estava fazendo nos dente é a ultima moda entre os humanos: revestimento dentário, cada dente recebe uma camada de metal da mesma cor que a porcelana do dente, esse serviço é importante por que previne contra carie, dá mais durabilidade e evita o desgaste do dente.

Se eu fosse um robô normal ficaria aqui esperando, mas como normalidade não existe em meu dicionário deixei o pacote em um guarda volume comunitário e sai para fazer um passeio, precisava pensar e achar uma solução para meu problema, do jeito que as coisas estão possivelmente não vou viver para ver o amanhã.

Perdida em meus pensamentos, eu estava atravessando uma rua de uso terrestre, e um carro espacial apareceu sem que eu visse de que lado ele veio, quase me atropelou, levei um baita susto. Não tive tempo de gritar ou reclamar, pois ele levantou vôo novamente. Depois que os veículos de uso terrestre foram substituídos por veículos espaciais não se ouve falar de atropelamento, lá de vez em quando é noticiado que um carro caiu por falhas mecânicas. Seria muita sorte da minha parte ser o único robô que pensa e sente entrar para historia como o primeiro atropelamento da era dos carros flutuantes...

 Deixando para trás o episodio do quase atropelamento, continuei caminhando sem saber ao certo o que estava procurando, eu estava passando por uma praça antiga tomada por patrimônio histórico, da para acreditar que ela foi construída a mais de mil anos... Eu amo as construções antigas, elas têm mais personalidade e também por que retrata uma época totalmente diferente da nossa e o material que eles usavam na fabricação de prédios e monumentos nem é mais usado atualmente... De certa forma tem mais vida, é engraçada a mania que tinha os humanos de antigamente de por nome de pessoas famosas em praças e ruas, alguns nomes foram preservados como essa praça aqui: Tiradentes...............

Sempre venho aqui para pensar e sempre que estou com algum problema e tenho a sensação que em outra vida eu fazia a mesma coisa...

Fui tirada dos meus pensamentos, quando ouvi um barulho que demorei em identificar: alguém estava chorando, e chorando alto, procurei de onde vinha aquele som, do outro lado da praça tinha alguém sentado em um banco debruçado sobre o próprio colo em prantos, cuidadosamente me aproximei, eu não tinha nada haver com aquele humano, não deveria se meter onde não era chamada, deveria virar as costas e voltar para o consultório e esquecer que um dia estive ali só para matar o tempo, mas não fiz isso.

▬Olá! Você está bem? ▬ Eu perguntei da maneira mais normal para robô, mesmo sabendo que o fato de eu ter ido até ele já revelava que eu seria um robô com defeito.

Ele levou um susto e levantou a cabeça para ver quem estava falando com ele. Ao ver o rosto do homem eu senti cada fiação minha congelar, fiquei sem reação. Era ele o homem que vejo através da nuvem de fumaça, é ele que rouba minha paz, que me faz sentir tanta saudade.

▬Sim... Por que você não vai encontrar sua dona? Preciso ficar sozinho. ▬ Suas palavras me atingiram com tanto impacto, senti cada uma delas como se fosse um balde de água fria em meus sentimentos. Olhei para ele uma ultima vez: seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar e seu nariz estava nojento, eca...

▬Desculpa-me não quis atrapalhar, pensei que poderia ajudá-lo de alguma maneira. ▬ Mesmo emocionada e desejando poder secar as lagrimas dele, me virei para ir embora.

▬Você não pode.

Parei tentando entender o sentido daquelas palavras.

▬ Por que sou uma maquina? Fabricada para responder somente os comandos da minha programação... ▬Ele secou o rosto e assoou o nariz...Ui. Depois ficou em silencio por alguns minutos, pensei que ele não iria responder minha pergunta e eu já estava me preparando para me virar e seguir meu caminho, então ele respondeu:

▬ Sim e Não.

▬ Como?

▬ Sim... Você é uma maquina e não era nem para estar conversando comigo agora, tão pouco deveria estar pensando em me ajudar. Não... Não penso que você poderia me ajudar mesmo que quisesse e que fosse humana.

▬ Por que pensa assim?

▬ Porque seria necessário ter posse de muito dinheiro para poder me ajudar e se você fosse humana e tivesse o dinheiro a qual preciso não estaria aqui agora falando comigo e sim trabalhando, as pessoas que tem dinheiro trabalham quase que vinte quatro horas por dia, isso é simples lógica. Olhe ao seu redor você vê algum humano que não seja eu?

Eu nem precisava olhar para saber que a resposta era não, então fiquei quieta.

▬ É tanto dinheiro assim que você precisa?

▬O tanto que seja suficiente para uma expedição de resgate na mata amazonas.

 

Entrar na mata amazonas não é fácil, se não pagar o acesso não é permitida a entrada. O que resta da mata é altamente controlado com muros de proteção, para evitar mais danos à natureza somente algumas pessoas tem autorização e as que ganham o direito tem que desembolsar verdadeiras fortunas.

▬ Alguém especial? ▬ Senti uma tristeza tão grande... Não entendi o motivo.

▬ Minha esposa está grávida, ela é cientista da NASA e se perdeu durante uma pesquisa, preciso achá-la, não posso perdê-la também...

Fui invadida por muitas sensações conflitantes: eu me sentia traída, a tristeza, a angústia e a solidão me corroíam por dentro, por outro lado a compaixão, a solidariedade, e o principal de tudo o amor me deixavam comovida e eu tinha que ajudá-lo, mesmo que custasse minha vida.

▬ você vai ficar aqui muito tempo? ▬ perguntei

▬ Por que quer saber?

Ele me encarou com os olhos semicerrados

▬ Só responda, por favor...

▬ Não pretendo sair daqui sem encontrar uma solução, nem que seja uma pequena idéia por menor que seja, sem isso não sairei daqui. Por que quer saber?

▬ Já volto.

Sem dar tempo para ele me questionar novamente sai em disparada à procura de um ponto banco a qual eu pudesse sacar dinheiro. Estava errado, roubar nunca é certo, mas eu tinha alternativa?

Senti um peso na consciência por não ser tão confiável quanto deveria, fui criada para ser de total confiança, alias todo robô baba é criado dessa forma e nunca se ouviu falar em defeito a não ser eu, fazemos tudo para a dona da casa, trabalho de ponto banco, compras, serviço de lavanderia entre outros trabalhos domestico. E é por esse motivo que temos acesso ao financeiro de nossos donos, afinal de contas somos programados para gastar somente o que eles querem.

Andei uma quadra e encontrei um ponto banco, coloquei meu USB e processei meu código de liberação do ponto, analisando a conta bancaria fiquei surpresa a constatar: um titulo premiado. Ótimo, pelo menos o titulo vai demorar mais para Penélope descobrir. Retirei o titulo e caminhei rapidamente até a praça novamente, eu estava apreensiva tinha duvidas se ele ainda estaria lá, mas ele permaneceu no mesmo lugar.

▬ Oi...

▬ Você voltou... Porque? ▬ Ele passou a mão no cabelo, estava visivelmente esgotado.

▬ Você falou que precisava de ajuda e eu voltei para te ajudar... ▬ Respondi calmamente.

▬ E como um robô pode me ajudar?

▬ Com isso... ▬ Entreguei a folha de papel para ele.

▬ Você retirou esse titulo da conta de sua dona só para me ajudar?

▬ Sim. ▬respondi sinceramente.

▬Não posso aceitar.

▬ Por quê?

▬ Por que seria um roubo, leve isso de volta...

▬ Nada disso, não vou levar de volta você precisa dele e outra não vai ser roubo se sacar o titulo que você tem e colocar no lugar, ele já deve estar para premiar e é do mesmo valor...

▬ Como você sabe desse titulo? Se nem minha esposa sabe disso, se a única pessoa que sabia dele esta morta.

▬ Eu não sei... ▬ Eu ia começar a me justificar, mas ele interrompeu

▬ Não tem importância, outra hora você me conta como sabe disso... ▬ Ele começou a folhear o titulo, verificando se o que eu havia falado era verdade.

▬ Você tem razão, o titulo é do mesmo valor a única diferença é que este aqui está premiado e o meu ainda não, mas até o final do ano ele premia. Responde-me uma coisa: Esse dinheiro vai fazer falta para sua dona? ▬ Não, ela tem uma boa economia.

▬ O que posso fazer por você, para te agradecer por estar me ajudado?

▬ Leve-me contigo, por favor?

▬ Não posso você tem dona, se a levasse eu a estaria roubando.

▬ Por favor! Se eu ficar aqui minha dona vai me mandar para o desmanche por defeito.

▬ Se for por causa do titulo não vai não, vou com você no ponto banco substituir esse, ela nem vai perceber.

▬ Não é por esse motivo, é por que estou com defeito... Eu fiz muita coisa que não devia e hoje em um ataque de nervos joguei a água do dia na cabeça de Stefanny a menina que cuido.

▬ Mas se é por causa disso não se preocupe, eles apenas vão examiná-la para encontrar e resolver o problema. Conheço o procedimento.

▬ Sim é isso que acontece quando o robô é levado para assistência pela primeira vez, mas você sabe o que acontece quando o mesmo robô e levado para assistência uma segunda vez?

▬ Sim. Ele é substituído por outro e o robô com defeito é derretido e seu metal é usado na fabricação de outros robôs.

▬ Isso mesmo, e é exatamente isso o que vai acontecer comigo.

▬ Você esta querendo dizer que já foi para assistência antes?

▬ Na primeira semana que fui ativada...

▬ Outro ataque de nervos?

▬ Prometo que vou ser um bom robô, por favor, não quero morrer.

▬ Não posso deixar que você seja destruída, afinal é você quem esta me ajudando, está decidido você vem comigo.

▬Obrigada!

▬ Vamos parar de conversar e agir mais? Temos que depositar o titulo e partimos o mais rápido o possível. ▬ Ele pegou carinhosamente meu braço e foi me conduzindo...

▬ Não. Não posso ir daqui.

▬ Você não disse que quer ir comigo?

▬ E quero. Mas tenho que levar menina Stefanny para casa, não posso deixá-la na rua.

▬ Onde ela esta?

▬ Ela esta no dentista e já deve estar saindo do consultório.

▬ Então fazemos assim: passamos e depositamos o titulo, daí você vai e leva a menina para casa, enquanto eu agilizo algumas coisas para viajem, dentro de uma hora nos encontramos  aqui na praça, ta bom pra você?

▬ Sim combinado.

 

Já era a quinta vez que eu olhava no relógio embutido no meu pulso, ele já esta quase quinze minutos atrasado. Será que o Felipe foi e me deixou aqui, se ele não aparecer logo terei que ir embora, se não minha situação vai ficar ainda pior.

O tempo tinha passado voando, cheguei no consultório e um segundo depois Stefanny saiu.

Ela continuou quieta demais, mas eu não me preocupei afinal logo eu estaria livre daquela falta de vida própria.

Levei um lanche para a Stefanny antes de ir embora, La no fundo eu queria deixar uma boa impressão, ela me chamou pelo meu nome pela primeira vez.

▬ Nicole. ▬ Eu me virei e olhei para ela.

▬ Vou sentir sua falta...

Não falei nada, só continuei meu caminho...